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sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Fragmentos da História de Alpiarça - A Praça de Jorna

Por: José João Pais
Muita gente fala da Praça de Jorna mas muitos desconhecem a sua génese, sobretudo a gente mais nova que, felizmente, não viveu essa época. Julgo ser pertinente falar dela. Contar. Dizer como funcionava. Faz parte da história da nossa terra.
Era o grande centro de emprego de Alpiarça, verdadeiro supermercado do trabalho, local de muitas lutas, de verdadeiras guerras, no sentido literal da palavra, pois foi local onde morreu gente, onde muitos ficaram feridos e donde muitos outros foram para a prisão. Dum lado, os compradores – os lavradores, ou os seus representantes, os feitores e capatazes – que pretendiam comprar barato, do outro estavam aqueles que vendiam a sua força de trabalho, pretendendo fazê-lo a um preço tanto mais alto quanto possível. Era uma luta desigual e brutal. Estamos a falar da Praça de Jorna que decorria ao Domingo, na chamada Praça Velha, antigo Jardim do Chorão.
Soeiro Pereira Gomes, escritor e militante comunista, definia o que era a praça de jorna:
“A praça de trabalho ou praça de jorna, é pois um mercado de mão-de-obra, a que vão assalariados e proprietários rurais (ou os seus delegados: os capatazes), e em que os primeiros, como vendedores, oferecem a sua força de trabalho, e os segundos, como compradores, oferecem o salário ou jorna, que é a paga de um dia de trabalho (jornal).
Daí a designação de praça de jorna, ou praça de trabalho, mais apropriada do que a praça de homens, como já se tem chamado, visto que não são propriamente os homens que estão à venda no mercado, mas sim a sua força de trabalho, isto é, o conjunto das suas faculdades físicas e intelectuais utilizadas na produção”.
Para o autor de “Esteiros” esta situação que se vivia na Praça de Jorna era “bem menos humilhante do que ver estar um só homem de chapéu na mão no pátio de um lavrador, muitas vezes a suplicar trabalho por qualquer preço”, pois que naquela, “o trabalhador sente a força da união dos seus companheiros, levanta a voz, teima, defende os seus direitos. Ao passo que no pátio do patrão, ou na sua casa, porque está isolado, o trabalhador sente-se fraco, cala-se com um copo de vinho, trai os seus interesses e dos seus companheiros”.
No entanto, a “Praça” de Alpiarça nem sempre funcionou na “Praça Velha”. Assim, entre 1910 e 1920, funcionou de um modo um pouco desordenado na Rua Direita, onde agora é o Jardim Público. A grande afluência de pessoas naquele local levou a que Presidente da Comissão Executiva da Câmara, João Augusto dos Mártires Falcão, enviasse a 13 de Fevereiro de 1921, uma carta ao Administrador nos seguintes termos:
“Sendo prejudicial para o transito de veículos e peões e ainda para a moral pública, a praça dos trabalhadores rurais realizar-se na Rua Direita, a Comissão Executiva deste Município, conforme preceitua o artigo 134 do Código de Posturas deste Concelho, resolveu que a mesma praça se realize além da Igreja Velha, não se podendo efectuar entre a torre (torre da igreja velha) e a Rua Direita, para também não prejudicar o mercado. Em virtude desta resolução, venho rogar a V.Ex.ª se digne mandar cumprir o que está preceituado naquele artigo e nos seguintes até ao n.º 136, inclusive, do mesmo Código de Posturas, a bem do serviço público”.
O Tenente Serafim da Fonseca, comandante do Posto da G. N. R. de Alpiarça e Administrador do Concelho, na sequência daquele pedido, sugere ao Presidente da Junta de Freguesia, no dia 14 de Fevereiro de 1921, o seguinte:
“Sendo hábito antigo nesta vila, a reunião de trabalhadores na Rua Direita, desta vila e Concelho, onde fazem a sua praça, rua de maior trânsito e mais central, sendo muito prejudicial a continuação dessa reunião naquele local, não só por impedir o trânsito,
como até se torna prejudicial à moral, não podendo por ali transitar senhoras, venho solicitar de V.Ex.ª se permitia que se conservassem abertas as portas do largo da igreja, onde podia ter lugar a referida praça, evitando assim o que deixo exposto.”
Manuel Duarte, então Presidente da Junta, responde a no dia 16 de Fevereiro:
“Estando esta Junta perfeitamente de acordo, e desde há muito, com o que V.Ex.ª expõe, resolve mandar abrir, nos dias e durante as horas próprias da praça dos trabalhadores rurais, os portões do largo da Igreja, se for necessário, mandar-se-ão tirar os referidos portões, o que em tempo (1917) outra Junta fez para facilitar a execução dos desejos de V.Ex.ª., desejos justificadíssimos. V.Ex.ª mandará avisar o Vice-Presidente desta Junta, o cidadão Joaquim Lourenço Fernão Pires, de quando deseja que se dê começo ao assunto deste ofício.”
Temos as opiniões do Administrador, da Câmara Municipal e da Junta de Freguesia, falta saber a posição de uma das partes, talvez a mais interessada – os trabalhadores rurais. Vamos então conhecer o que pensa a Associação dos Trabalhadores Rurais de Alpiarça, porta-voz dos interesses da classe mais numerosa no concelho. Em carta datada de 4 de Março de 1921 e dirigida ao Administrador do Concelho, Tenente Serafim da Fonseca, o Presidente da Assembleia-geral da Associação, António Justino Amendoeira, escreve o seguinte texto:
“Exmo. Sr. Administrador do Concelho de Alpiarça
Comunico que reuni esta associação em assembleia-geral extraordinária para escolher o local para a praça aos domingos. Como esta localidade não tem uma praça no seu centro, competente para esse efeito, nem mesmo para o comércio, foi resolvido expor a V.Ex.ª que é da opinião desta coletividade expropriar-se imediatamente a propriedade do Sr. João dos Mártires Falcão para a dita praça, e enquanto essa expropriação se não fizer, tomar-se a praça no largo que vai do Sr. Joaquim Duarte Barreira até ao Sr. Joaquim da Silva Catraio e junto ao chafariz.”
A 19 de Março o Tenente José Serafim da Fonseca manda publicitar um Edital, onde reafirma que a praça dos trabalhadores rurais é feita no Largo da Igreja Velha em todos os Domingos das 12 às 17 horas, de forma que não prejudique o funcionamento da venda de peixe e o mercado da vila. Depois das 17 horas a praça terminava e não eram permitidos ajuntamentos, como também não eram permitidos ajuntamentos na segunda-feira. Os prevaricadores estavam sujeitos às multas constantes do código de posturas.
Resta pois transcrevermos os artigos do Código de Posturas referentes à praça de jorna, objecto desta troca de correspondência, e que fica como documento a que todos se obrigam a cumprir e a fazer cumprir:
Código de Posturas Municipais do Concelho de Alpiarça.
Artigo 134ª – O ajuste para os trabalhos rústicos será feito ao Domingo, das 12 às 17 horas, nas freguesias do Concelho de Alpiarça, nos lugares do costume ou onde a Câmara designar na vila e a Junta de Freguesia na respectiva freguesia rural.
§ Único – Aos trabalhadores que faltarem ao cumprimento desta disposição, aplicar-se-á uma multa, que será de 1$00 para o trabalhador, 2$00 para o capataz e 10$00 para o patrão, se assistir à praça.
Artigo 135ª – O trabalhador que tiver bebido vinho ao patrão que o ajustou, directa ou indiretamente, sendo a bebida de vinho (molhadura), neste caso, a prova usual do contrato, é obrigado, sob pena de 2$00 de multa, a não faltar ao trabalho para que se ajustou.”
Este documento originou alguma contestação a principio, o que levou o Tenente Serafim da Fonseca, comandante do posto e Administrador do Concelho, a temer mais desacatos na vila, pelo que em carta enviada ao Governador Civil de Santarém no dia 3 de Março solicitava “que seja reforçada com 10 praças de Cavalaria o posto de
Alpiarça, no próximo dia 6, retirando as mesmas nesse mesmo dia, a fim de poder fazer cumprir que a praça dos trabalhadores rurais se faça no lugar para isso determinado, e não na via pública e evitar alterações de ordem e desacatos à moral pública, mais solicito de V.Ex.ª. 7 praças de infantaria para o mesmo fim, para a freguesia de Vale de Cavalos onde espancaram o regedor da freguesia na última praça.”
Apesar de uns trabalhadores rurais quererem a realização da praça no Largo da Igreja, outros no Largo da Igreja Velha e outros ainda na Rua Direita, junto de umas casas pertencentes ao Presidente da Câmara, José Augusto dos Mártires Falcão, para as quais a Associação dos Rurais pede a expropriação, como já referimos, o Administrador determina que o local designado pelas autoridades é no Largo da Igreja Velha. Para fazer cumprir esta determinação pede o reforço de 18 praças de cavalaria durante 4 ou 5 domingos até que a situação se normalize, tanto em Alpiarça como na outra freguesia do concelho de Alpiarça – Vale de Cavalos fazia então parte do concelho desde 1919.
Não é por acaso que encontramos no Jornal Correio da Extremadura de 2 de Abril de 1921 o seguinte comentário: “as patas dos cavalos da Guarda Republicana mudaram a praça dos trabalhadores em Alpiarça, para lugar mais conveniente.”
O Largo da Igreja Velha não seria por muito mais tempo o local da Praça de Jorna. Depois de alguma reflexão sobre este assunto, as autoridades administrativas e militares chegam à conclusão que haveria um local mais apropriado e que oferecia melhores condições. Assim, a 30 de Março de 1921 a Câmara Municipal deliberou que a praça se passasse a realizar definitivamente na Praça Velha “visto que o antigo local não ser apropriado para tal fim”, e ainda que sobre os capatazes que ajustassem homens fora do lugar “haverá procedimento contra os mesmos por desobediência à autoridade.”
A Praça Velha, ou Largo Vasco da Gama voltou, anos mais tarde, a ser confirmada oficialmente como local da Praça de Jorna, em reunião de Câmara realizada em 22 de Junho de 1950, a pedido da Guarda Nacional Republicana. Esta decisão veio na sequência dos graves acontecimentos ocorridos nos primeiros dias de Junho desse ano, em que no confronto entre trabalhadores rurais e praças da GNR houve vários ferido e a morte de Alfredo Lima, como havemos de referir de um modo mais detalhado em capítulo próprio. Aí se manteve até ao seu desaparecimento completo nos princípios da década de 70, se bem que a sua importância tenha começado a decair alguns anos antes.
Uma das pessoas que tentou enquadrar politicamente a actuação dos trabalhadores agrícolas e pôr alguma ordem e organização no modo como se deviam comportar nas Praças de Jorna, foi Soeiro Pereira Gomes, a quem já fizemos referência neste capítulo. Depois de entrar na clandestinidade, o que aconteceu após as greves de 1944, viu-lhe ser confiada a responsabilidade política do Alto Ribatejo. No jornal clandestino “Ribatejo”, publica em Agosto de 1946 um trabalho sobre as Praças de Jorna, onde avança com uma sugestão inovadora, que era a formação de uma comissão de praça, funcionando como uma verdadeira comissão de trabalhadores, que centralizava as reivindicações salariais e o preço do trabalho a apresentar aos “manajeiros”, “capatazes” ou “feitores”, que representavam os patrões nas praças.
“O que é então uma Comissão de Praça?” Perguntava Soeiro Pereira Gomes, para logo responder “É composta por 4 a 8 ou até mais elementos (conforme o número daqueles que vão à praça) nomeados por todos ou pela maioria como os mais honestos, mais firmes e mais combativos, capazes de unir os seus companheiros na praça”. Referia depois que a sua missão seria “tratar de todas as condições de trabalho dos camponeses em praça; ajuste de salários ou jornas; modo de execução de certos trabalhos; horário de trabalho (hora de ferra e desferra); hora de sesta; dia de praça; quantidade de molhadura”. Politicamente eram também dadas instruções às comissões de praça que deveriam “estudar a situação da luta diária ou semanal, e saber quando
deve recuar ou avançar, em defensiva e ofensiva. Assim, estudando a natureza dos trabalhos em curso (cavas, podas, etc.), ou a urgência do patronato devido ao estado do tempo (sulfatagem ou curas, conserto de valados), ou a falta de braços em períodos de trabalho intensivo (ceifas, vindimas), a Comissão tentará um aumento nas jornas – prepara uma ofensiva. Estudando a falta de trabalho no campo ou a concorrência da maltesaria (gaibéus e ganhões), a Comissão evitará que as jornas desçam muito e depressa – prepara uma defensiva. Ofensiva e defensiva que se podem dar ao mesmo tempo, como por exemplo: sabendo-se que no fim das sementeiras haverá crise de trabalho, a Comissão de praça força a subida das jornas no começo da faina”.
Finalmente sugere o modo de actuação conforme a reivindicação em causa, “se o objectivo é as jornas, a Comissão combina em conjunto, depois de conhecer a opinião nos ranchos, qual a jorna que se deve exigir. Em seguida, lança a palavra de ordem, por boca ou por escrito nas paredes, tal como: “Amanhã a praça deve sair a 30$00”. Finalmente na praça, depois de “aberto o preço” pelos capatazes, cada elemento da Comissão “aguenta” um grupo de companheiros na defesa da jorna combinada”1.
Este conjunto de regras, escrito por Soeiro Pereira Gomes em Agosto de 1946, foi um importante contributo para que as lutas desenvolvidas nos campo e nas praças de jorna, passem a ter uma componente organizacional que lhe havia faltado até então.
Refira-se como curiosidade, que o jornal copiografado “Ribatejo”, onde vinham explanadas estas ideias, cujo editor era o próprio Soeiro Pereira Gomes, foi feito em Alpiarça, pelo menos alguns números, numa casa do pai de António Cavaca Calarrão, no Vale do Rato, tendo a tipografia sido instalada dentro do patamar onde se pisavam as uvas. Ao mesmo tempo a casa servia de ponto de apoio importante, talvez o mais importante em Alpiarça, para as pessoas que viviam na clandestinidade, algumas delas quadros importantes do Partido Comunista, como era o caso de Soeiro Pereira Gomes, nessa altura membro do Comité Central.
Mais tarde, nas décadas de 50/60, as comissões de praça foram ganhando uma importância crescente, como Soeiro previra, já que os trabalhadores não podendo socorrer-se das suas organizações de classe – os sindicatos livres – sentiram necessidade de se organizarem de um modo mais eficaz nas praças de jorna, através dessas comissões que se regiam pelas regras atrás apontadas. Eram elas que davam as palavras de ordem em plena praça, sendo os primeiros a correrem o risco de serem presos pela Guarda. Quando a agitação subia de tom e a G. N. R. era chamada a intervir e detinha os mais interventivos. Aliás, para evitar estas situações repressivas, Soeiro P. Gomes, preconizava que as Comissões tivessem “carácter legal, isto é, serem conhecidas e aceite pelo patronato. Todavia não convém que a maioria dos seus elementos seja conhecida como dirigente da praça. Evitar-se-ão assim represálias dos patrões sobre este ou aquele elemento da Comissão, ou mesmo a violência das autoridades, em casos de luta mais acesa”. Muitas vezes para salvar a “cabeça da organização” contactavam-se outros trabalhadores, que não tinham qualquer missão de responsabilidade dentro da comissão, para dinamizar e agitar a praça de jorna, o que tinha que ser feito com algum cuidado de modo a evitar detenções. Estas comissões delineavam a sua estratégia antecipadamente em reuniões clandestinas e consideradas subversivas, muitas delas efectuadas em pleno campo, ou em casas de pessoas de confiança. O 25 de Abril de 1974 marca, definitivamente, o fim da história das Praças de Jorna.
1 “Praça de Jorna” de Soeiro Pereira Gomes. Edição “Organização dos Técnicos Agrícolas da Direcção da Organização Regional de Lisboa do Partido Comunista Português.

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